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Bossa Nova: Tom Jobim


10 de julho, 2008

Bossa Nova: Tom Jobim

“Um cantinho, um violão/ Este amor, uma canção…” Quase todo mundo, em quase todo o mundo, conhece este cantinho e esta canção. De tão conhecida, nem sempre se percebe o quanto exibe de sabedoria, musical e poética. Composta em 1960, com letra e música de Tom Jobim, “Corcovado” serve bem de exemplo daquele artesanato moderno na criação de canções que define a bossa nova, que define uma idéia do Brasil, que define até hoje uma idéia ou um sonho de nós mesmos.

São só duas notas, oscilando para lá e pra cá: “mi-ré-mi-ré, mi-ré-mi/ mi-ré-mi, ré-mi-ré-mi…” Tocadas a seco, sem harmonia e sem acentos, nem chegam a ser uma melodia: parecem apenas material bruto, mera repetição do intervalo de segunda maior, que qualquer criança poderia tocar na primeira aula de piano.

Assim funcionam várias canções de Tom Jobim dessa fase, que vai de fins da década de 1950 a meados da década de 60 – a bossa nova foi curta. “Insensatez”, por exemplo (de 1961, parceria com Vinicius de Moraes), que repete também duas notas, um intervalo de segunda menor: “Ah, insensatez/ Que você fez…” (mi, fá-mi-fá-mi/ fá-mi-fá-mi…). Para não falar do exemplo mais radical, o auto-explicativo “Samba de Uma Nota Só” (1960, com Newton Mendonça), cuja ironia maior está na segunda parte, com todas as notas da escala vertiginosamente subindo e descendo, contrapostas à “nota só” de antes.

O milagre, que transforma algo tão simples em música tão incrível, tem a ver com as harmonias, por um lado, que vão colorindo de sentidos cambiantes essa poucas notas repetidas e, por outro, com a prosódia, a relação entre palavra e melodia, que confere acentos rítmicos inesquecíveis a cada pedaço de melodia e significados afetivos não menos impossíveis de esquecer.

A mitologia de imagens e costumes da bossa nova – o cantinho e o violão – artificiosa e generosamente inventada por seus próprios artistas, mais tarde repetida até a náusea em versões publicitárias, ajudava a esconder a arte na arte e afinal lançava essa arte a um outro plano, avesso a qualquer exibição de autoconsciência.

Tom Jobim é o grande mestre moderno da composição de canções no Brasil. Melhor do que qualquer outro, ele tem o gênio capaz de extrair o máximo do mínimo. É uma qualidade arquitetônica da sua música, digna de Niemeyer e Le Corbusier (entre outros mestres modernistas que o jovem arquiteto Jobim estudou), combinada a uma exuberante habilidade de incorporar tradições musicais diversas. De Chopin a Garoto, de Ravel a Gershwin, de Villa-Lobos a Caymmi, tudo vira matéria viva nas suas mãos, modulável no espaço da canção.

Que a modernidade musical, essa impressionante arte de potencializar elementos mínimos servisse de inspiração e suporte para a arte dos poetas foi uma felicidade, que em boa medida se deve ao milagre Vinicius de Moraes. Outro tanto se deve ao milagre João Gilberto, que soube entoar essa nova poesia cantada, um grau crucial acima da voz falada, e sintetizar o samba no violão.

O resultado compõe um verdadeiro modelo novo de canção popular. Reconhecido no mundo inteiro como um exemplo supremo na arte da canção, esse modo de fazer as coisas segue estimulando, direta ou indiretamente, o pensamento dos nossos cancionistas.

Segue também definindo uma visão moderna e brasileira da música, “na dimensão da eternidade”. Com a obra de Tom Jobim, que começa na bossa nova e depois se diversifica e multiplica, a partir de sua próprias lições, a civilização brasileira resolve-se a si mesmo em chave nova, tecnicamente avançada e metafisicamente leve. O resto é mar.

“Tom, o Arquiteto do Mínimo.” Caderno especial para os 50 anos da Bossa Nova. Folha de S.Paulo, 10/07/2008.