Reduzido à essência, o livro narra a rotina de trabalho de uma psiquiatra no CHSP, um hospital penitenciário em São Paulo. Condições, protocolos, atendimento; acima de tudo, a relação com os detentos, neste lugar que é e não é uma prisão, mas guarda muito do pior das prisões de fato, de onde vêm os pacientes.
Dizer só isso, no entanto, não é justo. A essência real do livro está, em primeira instância, nos relatos que Natalia recolhe, dos muitos homens, mulheres e crianças que ela trata ao longo dos anos. A lembrança de Estação Carandiru, de Drauzio Varella, será inevitável para qualquer leitor; mas o espírito aqui soa diferente – outra equação de amor/humor –, assim como a forma.
Aqui tocamos num ponto importante. A aparente lisura da prosa, que se declara
abertamente não-ficção, se enriquece de uma construção não menos abertamente literária. Em especial, na história de uma detenta angolana, presa ao transportar drogas (sem saber-sabendo, uma única vez), história que vai
aparecendo aos poucos, em vários capítulos, entremeados aos outros. O controle narrativo dessa história organiza o livro inteiro, com mestria.
Mestria também é o que se revela comparando a nova edição com a primeira (editora Elefante, 2017). De lá para cá, Natalia publicou Copo Vazio e As Pequenas Chances, sem falar nas colunas e outros textos. As diferenças entre as duas edições renderiam boas aulas. Desde frases suprimidas e novas divisões de parágrafo até pequenas e não tão pequenas mudanças de redação. Tudo em prol de um texto mais sóbrio, com sentenças mais bem cortadas e uma voz mais madura. Ao que se acrescentam prefácio, epílogo e posfácio.
E isto só ressalta, afinal, uma outra camada deste seu primeiro livro. Pois o que vai se tornando evidente, em paralelo com os relatos, é uma outra história ainda: a história da psiquiatra que se faz escritora. Lido agora, depois dos outros, Desterros já traz muitas evidências do que ela escreveria depois, no campo assumido da ficção. Comovente, impactante, com enormes doses de empatia e consciência, ganha lugar definitivo entre as obras de um dos nomes de maior destaque da nossa literatura hoje.
(São Paulo: Todavia, 2025)