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Gilberto Gil

TODAS AS LETRAS


Por Arthur Nestrovski

01 de agosto, 2019

São dois livros. Que se tramam e destramam: todas as 460 letras de Gilberto Gil, em contraponto com cerca de duzentos comentários, muitos deles extensos, que ampliam em muito a primeira edição, de 1996. Supremamente bem editados por Carlos Rennó, que gravou mais de 40 horas de depoimentos do artista e transformou o mar de prosa num mosaico único de autobiografia, crítica, filosofia, política, história e religião, eles refratam a luz da poesia num diamante original da língua, instrumento de uma lente humana como nenhuma outra entre nós.

“Tudo está ligado e tudo tem a ver, não havendo fato isolado no universo”, diz Gil, em certo ponto. Tudo está certamente ligado no universo desse cancioneiro, que a essa altura já é patrimônio comum, uma das coisas que nos liga no meio do caos. O que José Miguel Wisnik descreve como o “sentimento do universo e o senso da medida humana”, num lindo ensaio de abertura – uma meditação sobre o emprego da palavra “ilusão” na poesia de Gil, e também uma reflexão sobre o tempo – ganha aqui uma equação brasileira capaz de ser, ao mesmo tempo, e com pleno domínio das ilusões, cosmopolita e local, ultramoderna e arcaica, erudita e popular, cientificista e mística, sem se prender ao balanço das dualidades.

O próprio compositor parece responder às intuições de Wisnik ao comentar agora uma de suas canções mais bonitas, “Seu Olhar”: “Eu não costumo usar ‘ilusão’ no sentido corriqueiro [mas sim] na acepção budista […] no sentido do profundo engano […] Só sendo a vida uma ilusão poderá a morte ser alguma coisa; só o desiludir-se da vida pode fazer da morte alguma coisa”.

Que isso não soe despropositado no contexto de uma conversa sobre sua canção de amor, que seja de fato o fecho de uma descrição memorável da fabricação noturna de poesia e música serve de exemplo para o âmbito do livro. Aqui se expressa com todas as letras aquilo que as letras todas expressam sem. Mas essa é mais uma ilusão, porque os comentários não são uma verdade fechada, nem mesmo uma verdade tropical: eles nos remetem de volta, com outros olhos, à poesia, de volta com outros ouvidos à música e de volta, com outra atenção, à voz de Gil, que ressoa silenciosa por todas as páginas, conferindo outra presença e outra eloquência à mais eloquente que seja de suas falas.

A construção das canções dá pano para luxuosas mangas. O prazer e a dificuldade de escrever poesia são reencenados dezenas de vezes, cada vez de modo particular. Seja nas assimetrias e simetrias do metro em “Super-Homem”, seja nas conotações sócio-topológicas de “Ladeira da Preguiça”, seja na sabedoria chinesa de “Realce”, entre tantas outras, “o feitio de uma canção é uma loucura!” – onde a palavra “feitio” pode ser lida em dois sentidos: fabricação e resultado.

Aquele que, em outro lindo texto de apresentação, Arnaldo Antunes descreve como “o receptivo”, faz do seu cadinho um cosmos, onde podemos afinal nos entender, através do que ele faz. “Viver só me custa a vida”, diz um dos homens de vida mais bem vivida entre nós. (O livro é também registro dessa riqueza.) Despojamento, desapego: são termos assim, nada comuns, que reverberam na gente logo após a leitura de tanta poesia. Se as lições e vivências ali concentradas, se tantas décadas dessa vida brasileira vêm se traduzir agora, musical e definitivamente, em maturidade e bem-estar, isso talvez seja a ilusão da ilusão, mas reforça o sentido de sabedoria humana da arte de Gilberto Gil.


Publicado em Tudo Tem a Ver. Todavia Editora: São Paulo, 2019