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Harold Bloom


Por Arthur Nestrovski

14 de outubro, 2019

Antes de se tornar um autor best-seller, por obras como O Livro de Jó (1990) e O Cânone Ocidental (1994), o próprio Harold Bloom costumava dizer que, independentemente do que mais fizesse, seria lembrado, afinal, por um único livro: A Angústia da Influência. Escrito em menos de uma semana, em 1973, o pequeno tratado sobre a tortuosa relação entre autores que se sucedem uns aos outros viria a ser traduzido para mais de quatro dezenas de idiomas e carrega hoje a distinção de um clássico da teoria literária.

O livro foi o primeiro de uma “tetralogia da influência”, que está por trás de quase tudo o que Bloom escreveu, seja sobre literatura, seja sobre política e religião, entre outros assuntos; seja nas dezenas de livros autorais, seja nas centenas de outros livros que organizou, seja ainda nas resenhas, textos curtos e entrevistas que produziu com energia intelectual única. Sem falar nas lendárias aulas, na Universidade de Yale e também (por alguns anos) na Universidade de Nova York. Bloom era uma força da natureza, conjugando memória verbal sobrehumana com enorme senso de humor e iguais doses de afronta.

Resumida ao essencial, A Angústia da Influência descreve, em termos tirados da psicanálise e da cabala judaica, a relação entre o “poeta forte” e o “efebo” que lhe segue. Na teoria de Bloom, todo autor vem de outro autor; e o novo poeta só se torna de fato quem é quando tem força para deixar escutar a voz do precursor na sua própria voz, sem se deixar dominar por ela. O processo pode levar muito tempo, passando por vários estágios. E tende a ser reprimido, como as tramas familiares na psicanálise freudiana.

A teoria se aplica, afinal, não só à literatura: é uma teoria da existência. E a influência dessa teoria seria grande e variada. Inspirou diretamente, por exemplo, a peça Rancor (1993), de Otavio Frias Filho – que, além de dramaturgo, era diretor de Redação da Folha –, para ficar neste exemplo próximo. (A peça traduz as agruras da influência para o campo do teatro, confundindo bastidores e cena. Bloom soube da peça, na época, e se divertiu com a ideia. Não muito depois, viria a se tornar colaborador mensal do caderno “Mais!”, da Folha.)

Um conto famoso do escritor argentino Jorge Luis Borges imagina um homem, “Funes, el memorioso”, capaz de lembrar de absolutamente tudo o que vive, e os terrores dessa memória total. Para todos que o conheceram, Bloom, como leitor, parecia um Funes. Seus críticos, que não eram poucos, acusavam a teoria de só fazer sentido para um leitor assim, capaz de ouvir ecos e acentos de toda a literatura a cada novo texto.

Parece menos uma crítica do que involuntária expressão de apreço, numa ironia tipicamente bloomiana; mas falta aí o reconhecimento da dimensão literária e humana da sua escrita. Raros autores foram capazes de escrever com semelhante verve sobre tantas obras e tantos assuntos, e com tamanho gosto. A prosa de Bloom é um influxo de vida, ideias jorram da página com a mais natural erudição. Só pode ser comparada a seu talento de orador, capaz de falar de improviso por mais de uma hora como se estivesse lendo um texto, citando longos poemas, para a frente e para trás, sem consultar uma única página.

Vai daí também sua pouca paciência com os rumos da crítica literária, que há muito se abriu para outras áreas, dos estudos culturais ao feminismo, da antropologia à história. Para ele, os estudos literários correm risco de extinção; mas o sucesso de sua própria obra, com públicos hoje que se multiplicam para muito além dos foros de especialistas, parece eloquente prova em contrário. A crítica não vai acabar porque a literatura não vai acabar. E a crítica, com autores como Bloom, se confunde com a própria literatura.


Publicado em Folha de S. Paulo

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