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Leituras na Quarentena: Günter Grass


Por Arthur Nestrovski

11 de maio, 2020

Direto ao ponto: o livro é uma obra-prima. Nesses tempos de reclusão, que inspiram a pensar sobre a vida, a história dessa vida nos inspira, como poucas, a pensar.

Publicado em 2006, sete anos depois de Günter Grass (1927-2015) ser laureado com o Prêmio Nobel, virou alvo de muitas críticas, por motivos que são, ao mesmo tempo, internos e externos a ele. Beim Häuten der Zwiebel (Göttingen: Steidl Verlag, 2006)1 rememora, com incrível riqueza de detalhes, um período de duas décadas, de 1939 a 1959, mas concentrado nos dez anos do meio, dos 16 aos 31 anos de idade do autor. Isto é, do fim da guerra (1944-45), com uma breve passagem do adolescente pelas tropas nazistas Waffen-SS, à publicação de seu primeiro livro, O Tambor, que o tornou, quase de imediato, um dos nomes de ponta da literatura europeia.

Tropas nazistas? Surpreendente e lamentavelmente, sim, e foi a revelação deste fato, ainda antes da publicação do livro, que provocou verdadeira torrente de acusações. Não era para menos: Grass sempre fora uma das vozes mais eloquentes contra as dificuldades de a Alemanha enfrentar seu passado. Assumiu para si um papel de vigilância. Desde a década de 1960, quando escrevia discursos para Willy Brandt (o prefeito socialista de Berlim ocidental), passando por inúmeras polêmicas, com destaque para seu repúdio a Ronald Reagan e Helmut Kohl, em 1985, por terem visitado um cemitério em Bitburg onde, entre outras vítimas da guerra, estavam alguns jovens membros da SS – exatamente como ele mesmo tinha sido –, nada menos de sessenta anos se passaram sem que dissesse uma palavra sobre seu próprio passado.

Mas esse juízo também precisa ser posto em xeque, por força do livro. Narrado com inigualável senso de realidade, sem a menor condescendência consigo mesmo, esse romance de formação nos faz compreender o quanto a obra inteira de Grass – e sua multifacetada vida – não são outra coisa senão a tentativa, renovada mil e uma vezes, de dar conta daquele erro. Para muitos, isso não desculpa o fato de ter escondido o tempo que passou como soldado (“sem jamais dar um tiro”), até ir parar num campo de prisioneiros de guerra. Mas quem seria “ele”, aqui? Quem seria o “eu”, quando quem narra a história está a tamanha distância do adolescente que viveu os fatos?

A mistura de primeira e terceira pessoa faz pulsar o coração dessas trevas. E as ironias vão mais fundo, quando se pensa no romancista que, às vésperas de virar octogenário, escreve a história de quem passou por tudo aquilo, viveu elaborando a experiência (e se nutrindo dela) e agora escreve um duplo livro: explícita e tácita história do escritor que até aqui não podia escrever essa história.2

Nada disso dá ideia da felicidade literária, em páginas e páginas (são quase 500) transbordando de sensações e sentimentos, num percurso que leva o ainda adolescente, muito pobre, a trabalhar em minas de carvão, depois numa fábrica de lápides, entre outras atividades, enquanto aos poucos vai se definindo sua vocação de artista gráfico, escultor, poeta e, finalmente, escritor de ficção. As passagens sobre a guerra são inesquecíveis. “Tolstói misturado com Vonnegut”, diz Timothy Garton Ash. Seu gosto por cozinhar, na tradição mais popular alemã – de onde, aliás, vem a metáfora que dá título e orienta o livro inteiro, em seu avanço lacrimoso rumo a um centro que não há –, seu prazer em desenhar e esculpir; os primeiros amores e o primeiro grande amor; as viagens, as paisagens, as casas; o primeiro casamento, os primeiros filhos; as pazes com o pai, a morte da mãe; inúmeras sombras e luzes da obra posterior, tudo agudamente referido como ecos daquele núcleo do passado, não só os episódios da guerra em si, mas suas consequências em muitos anos a seguir, numa trama de memória, emoção e pensamento que faz deste um dos maiores livros do início do século XXI.

Tem mais. Nesses tempos de reclusão, que inspiram a pensar sobre a vida, a história dessa vida nos ensina, como poucas, a viver com consciência, atento ao que se diz e ao que se faz. Ela termina com a publicação de seu primeiro livro. Para o resto, agora, diz Grass, “não [tem] mais cebolas, nem vontade”. Já foi tudo escrito. E já está tudo aqui.

1 Existem duas edições em língua portuguesa: a brasileira, Nas Peles da Cebola, traduzida por Marcelo Backes (Record, 2007); e a portuguesa, traduzida por Helena Topa, Descascando a Cebola (Casa das Letras, 2007). Vale mencionar também uma excepcional tradução em língua inglesa, de Michael Henry Heim, Peeling the Onion (Harvill Secker, 2007/ Vintage, 2008).

2 Sobre isso, vale a pena ler o ensaio de Timothy Garton Ash, “The Brown Grass of Memory”, em: Facts Are Subversive (Yale Univ. Press, 2009).


Publicado em Revista Gama

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