logo

O Amor Entrou Como Um Raio

Celso Sim Canta Batatinha CD Selo Circus, 2017


22 de dezembro, 2017

O disco é tão impressionante e esse lançamento tão importante que merecem um mínimo de história.

Batatinha era Oscar da Penha; foi Antônio Maria quem lhe deu o apelido, gíria da época para “boa gente”. Sustentava nove filhos trabalhando como tipógrafo; aposentado, já na década de 1970, seguiu labutando, na Imprensa Nacional de dia e à noite no Diário de Notícias.

Ele faz companhia eterna a Nelson Cavaquinho e Lupicínio Rodrigues. Cada um a seu inconfundível modo é um poeta do sofrimento e da melancolia, da solidão e da pobreza, nas glórias consoladoras do samba.

Em 1997, aos 72 anos, pouco antes de morrer, lançou um CD com 16 músicas, cantadas por ele mesmo e convidados: Caetano, Gil, Chico, Bethânia (que já gravara várias de suas canções)* e Jussara Silveira (outra de suas grandes intérpretes). Era esse disco, de arranjos simples e caráter documental, a principal referência para o acervo de um dos grandes mestres da música popular brasileira, ainda hoje relativamente pouco conhecido.

De repente, O Amor Entrou Como Um Raio. O verso que dá título ao CD é de Paulo César Pinheiro, parceiro de Batatinha em “Conselheiro”. E essa faixa, por si, já bastaria para consagrar Celso Sim como predestinado intérprete do baiano; consagrar também o incrível trio que toca com ele: Webster Santos (violões, cavaquinho, guitarra, viola brasileira), Filipe Massumi (violoncelo) e Maurício Badê (percussão).

O disco é tão impactante que fica difícil se controlar, para não parecer exagerado. Um daqueles discos que a gente quase não aguenta escutar, de tão bom. Tudo soa ao mesmo tempo reinventado e como que finalmente conduzido a si. No calor da hora, dá vontade de afirmar que risca o céu da música como um clássico.

Comparado a seus outros CDs – incluindo o que gravamos juntos, Pra Que Chorar (2010) –, Celso está mais contido e paradoxalmente ainda mais expressivo. Tudo o que ele canta, ele diz. E tudo o que diz, quer dizer. Direto e maduro, com a simplicidade que vem com os anos.

“Meu desespero ninguém vê/ Sou diplomado em matéria de sofrer” (“Diplomacia”, parceria com J. Luna).

“Não existe razão que um samba não vença” (“Pra Todo Efeito”, com Lula Carvalho).

“Se eu deixar de sofrer/ Como é que vai ser/ Para me acostumar” (“Hora da Razão”, com J. Luna).

“Ninguém sabe quem sou eu/ Também já não sei quem sou” (“Imitação”).

“Tudo é carnaval/ Pra quem vive bem/ Pra quem vive mal” (“Direito de Sambar”).

“É carnaval, é hora de sambar/ Peço licença ao sofrimento/ Depois eu volto pro meu lugar” (“Depois Eu Volto”, com J. Luna).

Um parágrafo tem de ficar reservado para a guitarra alucinante de Webster Santos em “Bolero”. E para a levada do violão em “Conselheiro”. O disco, aliás, é uma enciclopédia de levadas e texturas.

No conjunto, os arranjos inventam uma espécie nova de minimalismo luxuriante. Tanto quanto as notas, importam os silêncios, as pausas, as inesperadas retomadas da forma, os torneios, desvios e pedras no meio do caminho.

Salve, Filipe Massumi! Ele assume aqui, com a maior naturalidade, o cetro de Príncipe do Violoncelo Popular Brasileiro.

O trio se completa com Maurício Badé, esculpindo percussões tonais e não tonais. Quem insiste, obsessivamente, naquela figura de sexta maior-sexta menor do agogô, em “Imitação”, dentro e fora da harmonia, sabe bem o que está fazendo.

Com tantas virtudes, encantado pelo encontro de músicos especiais numa hora especial, que esse disco sirva, acima de tudo, para fazer ouvir Batatinha. Que sua arte não se perca ladeiras da memória abaixo. Que ela renove o grande gênio do autor no pequeno gênio de cada um que escuta.

Batatinha será eternamente necessário e Celso Sim está cantando como nunca, nesse disco impressionante e imprescindível.

Facebook, 22/12/2017.

*Jamelão já tinha gravado uma música de Batatinha no começo dos anos 1960, mas foi quando Maria Bethânia incluiu “Diplomacia” no roteiro do show Opinião, em 1964, que o compositor baiano começou ficar conhecido nacionalmente. Alguns anos depois, Bethânia gravaria outras três canções dele no disco Rosa dos Ventos; e ainda “O Circo” no LP Drama.