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Pequeno Hamlet

[Ian McEwan: Nutshell]


Por Arthur Nestrovski

01 de março, 2017

Dizer que esse pequeno Hamlet, ao contrário de seu avatar, finalmente age para vingar a morte do pai, tramada pela mãe com o tio, não chega a estragar a leitura, depois de tudo o que já se publicou sobre o romance, desde seu lançamento há poucos meses. Narrado em primeira, intrauterina pessoa, Nutshell (publicado no Brasil como Enclausurado) é o décimo sétimo livro de ficção de Ian McEwan e consagra o escritor inglês como mestre de um gênero no qual se cruzam, natural e despretensiosamente, alta literatura e cultura pop.

Desde o primeiríssimo First Love, Last Rites (1975), até os recentes Sweet Tooth (2012) e The Children Act (2014), chegando agora a um ponto de virtuosismo supremo, sua prosa se nutre das referências mais ricas, sem nem por isso almejar às ambições de colegas como Coetzee e Ishiguro, para não falar de Philip Roth. O livro talvez não seja, afinal, muito mais que um divertimento, mas é um divertimento espetacular, um show de invenção e controle; do ponto de vista da prosa em si, entre outras virtudes, desfila um verdadeiro festival de metáforas, sucedendo-se umas às outras com felicidade mozartiana.

Já que estamos nisso, a felicidade de quem escreve fica aparente e se redobra na de quem lê. Em muitos pontos, dá vontade de aplaudir. Vontade de ler em voz alta, porque um prazer desses não dá para guardar sozinho. E já que falamos de voz, que a voz irreal do narrador seja tão imediata e irresistivelmente aceita, contra tudo o que de resto povoa o contexto realista, só dá prova do artesanato desse autor audacioso o bastante para reescrever, com astúcias de romance policial e argúcias de comédia, nada menos do que a mais famosa tragédia do mais famoso de todos os autores da língua.

O livro tem vários tours-de-force sexuais, esbanjando ânimo num campo habitualmente tão difícil para a literatura. E outros tantos saltos mortais em áreas que vão do vinho à ciência, da poesia ao mercado imobiliário. Como horizonte de fundo, sustenta o mesmo otimismo racionalista já defendido antes por um homem que não cansa de se surpreender com os mil e um avanços da civilização – tratamento dentário sem dor, luz elétrica, contato imediato com quem a gente gosta, e com o melhor da música que o mundo já conheceu etc. etc. –, sem deixar de perceber as ameaças e pior-que-ameaças do presente. No limite, a própria experiência de escrever e ler literatura, reescrevendo e reinventando os séculos de experiência acumulada, pode então ser vista, também, como resposta, atualizada em cada pequeno Hamlet, em cada um de nós.


Publicado em Blog da Companhia das Letras

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